quarta-feira, 14 de março de 2012

Lese

Havia três campinas a céu aberto. Céu azulado e rosa feito
algodão doce. Nas três campinas nós relembrávamos nossa infância. E criávamos
tudo de novo. Tudo outra vez. Na campina nós dávamos as mãos e andávamos três
passos cada, juntos. Ainda me pergunto se não era o céu a campina, e o algodão,
nós mesmos.
Ainda me pergunto se nós não pisávamos no céu. Ou se
pisávamos dentro de nós mesmos. E também
ainda me lembro do silêncio acariciando cada pétala de cada flor, com cada grão
de pólen. E me pergunto se o silêncio não
era nossas mãos, nossos dedos pequenos, macios, infantis, ingênuos. Dedos que
nunca sentiram nada além de...flores?
E quando deitávamos, sentindo as cerdas da grama em cada
centímetro de pele, você com seu vestido de lese azul, ou era eu que vestia o
azul do seu vestido? E quando deitávamos na tarefa banal de ver estrelas, você
me perguntava qual era a banalidade nisso. Eu respondia com toda a sinceridade
do mundo que eu era criança, e ainda não conhecia a banalidade.
E não há nada de errado com isso. Mas se tivesse um piano de
cauda no meio de uma das nossas três campinas, nós nos sentaríamos e tocaríamos com aqueles mesmos dedos pouco
treinados alguma melodia de Beethoven. Não porque é Beethoven seu compositor
preferido, mas por ser Bach forte demais. E qualquer força maior rasgaria seu
vestido de lese azul, o nosso vestido de lese azul.
Mas era azul o céu aberto de algodão. E é azul tudo aquilo
que ecoa no universo: nossas notas no piano da campina, seu vestido de lese e a
minha nostalgia poética. Por que nunca vi seu vestido de lese azul, e nunca me
deitei em nenhuma das três campinas, e nunca toquei piano...e nunca ouvi Bach e
sequer sei quem é Beethoven. Sei apenas que no inverno faz frio e que em algum
momento verei estrelas nos olhos de alguém. E nesse momento saberei que vi sua
alma. E nesse momento saberei que vi uma alma, e poderei contar a todos os
poetas e a todos os filósofos que, sim, eu vi uma alma. E que ela era azul.

Um comentário:

diotima disse...

"e que ela era azul". a maneira que escreve toca profundamente minha alma.