terça-feira, 19 de abril de 2011

Um longo texto para uma longa história

Ainda consigo me lembrar da fria mão de meu pai que segurei com minhas mãos, ainda consigo me lembrar da bochecha fria que beijei com meus lábios em seu velório. Foi um bom velório, tinha um bom chá, um dos melhores que já tomei, bons amigos participaram dele e me levaram para um jogo de truco e risadas. As flores, várias coroas, esbeltas e brilhantes, vermelhas, amarelas, azuis; todas vindas de pessoas que sentiriam sua falta. Todas belas, mas confesso que as melhores eram aquelas que repousavam junto a ele em seu caixão, brancas e limpas, relembrando a salvação eterna, a liberação da alma.

Lembro-me que tínhamos brigado há pouco antes de ele ser hospitalizado, lembro-me que nunca tive a chance de desculpar-me. As lágrimas que derramamos, minha mãe e eu, em súplica para ele tomar seus remédios, implorávamos em frente a sua cara fechada e amargurada pelo amor e alegria que estava trancado por sete chaves negras dentro do calabouço de seu coração. Sem sucesso. Íamos para Piracicaba, almoçar com nossa família, mas sua depressão e os remédios que não tomava o impediam e o prendiam em casa. Saímos com nosso carro, minha mãe e eu, mas voltamos após apenas alguns metros, sem podendo deixa-lo lá sozinho, naquela mansão abandonada.

Lembro-me que acordei, em um outro sábado, se não me engano, quase normal. Estava na sala, assistindo meus desenhos e tomando meu café simplório da manhã, quando escutei gritos clamando por ajuda. Corri as escadas, segui o som que me encaminhava para o quarto de meus pais. Encontrei minha mãe por cima de meu pai, meu irmão e ela segurando seus braços debatendo, branca espuma saindo-lhe por entre os dentes cerrados. Ouvi uma ordem de minha mãe, e meu irmão levara-me para fora do quarto. Esperando sentado no branco banco de madeira, similar aos das praças, em frente à copa, com as mãos no rosto e lágrimas fugitivas, ouvia as sirenes e via meu desesperado tio Ricardo tentando interromper o tão despreocupado tráfego da avenida.

Fora ao hospital e lá ficou, até receber alta, finalmente. Foram tristes dias aqueles em que esteve fora, dias de preocupação e tensão palpável. Nada ainda de tomar os remédios, passaram-se, imagino, duas semanas e lá estava meu pai em convulsão novamente. Fora levado ao hospital.

Prometera-me, muito antes disso, que um dia leria para mim um texto, chamado “Se”, de Rudgard Hipling e traduzido por Guilherme de Almeida, que está agora pendurado no corredor de minha atual casa e antiga dele. Nunca chegou a lê-lo para mim, mas por não haver tempo, fora cedo demais. Eu apenas espero que ele, onde quer que esteja, não fique pensando nisso como uma má coisa, pois aprendi a me virar e o li sozinho. Belo texto, bem escrito, profundo pensamento. Apenas espero que não esteja se martirizando, pai, meu amor por você não se baseia nessa leitura. Eu ainda o amo, e, acredite, suas “dívidas” são inexistentes, pois nunca existiram, e, se existissem, elas seriam repletas pelo amor que com certeza ainda me dá, e pelas lágrimas de meu pesar. Pesar de não tê-lo ao meu lado, mas também a esperança de encontrá-lo ao lado de Deus. Se formos realmente pensar, eu lhe devo, e devo muito. Devo mais do que possa imaginar, meu querido.

Como disse, antes de divagar, ele voltara ao hospital e fomos fazer uma visita. Enquanto esperávamos ser chamados, conversávamos, quando, me lembro bem, minha tia Maine me perguntou se eu tinha certeza se queria entrar na sala, pois meu tutor estaria com um respirador e fios conectados à pele. Como maneira de poupar a mim mesmo da dor, de forma egoísta, achei melhor não entrar, não vê-lo. Minha contagem deve estar errônea, mas dois dias depois, ele se foi. Se foi, e agora eu sempre fico na dúvida, que, se eu tivesse entrado no quarto, conversado com ele, pedido sua sobrevivência em nome de meu amor, ele teria vivido? Sempre me pergunto se ele imaginou que eu não o queria ver, por conta de nossa briga, nossa inútil e estúpida briga. Pergunto-me sempre se apenas a minha presença o teria feito lutar mais um pouco. Nunca me esqueço disso, e é por isso que, sempre que há alguém hospitalizado, eu nunca mais desperdicei uma visita. Tive que aprender da pior maneira.

Agora, fico relutante também, pois minha não-Crença em Deus significaria que eu não tenho chance alguma de encontra-lo novamente em algum momento, qualquer momento. Pergunto-me se devo contrariar-me e acreditar em Deus para ter a chance de vê-lo, ou ser verdadeiro a mim mesmo e nunca mais poder vê-lo. Lembro-me que o vi, um dia, na casa de minha vó, como um reflexo na porta de vidro, no mesmo lugar em que batera quando menor na parede ‘invisível’, sua faze estava límpida e feliz, vendo-me, sem seus óculos, admirando-me. Vi seu reflexo, assustei-me, virei para procura-lo, não encontrei nada, ao voltar-me ao vidro, sumira novamente. Outro dia inesquecível. Meu amigo, considerado meu irmão negro, Adeilson, é o que poderia recorrer a esse acontecimento, por ele acreditar em espirítos na Terra, e pela possibilidade de minha mãe entristecer-se em meio a essa noticia. Me ajudara como pôde, me dissera o que achava, me aconselhara. Obrigado, Adeilson, amado amigo, agora longe em São Paulo.

Apenas saiba, Pai, eu o amo e sempre o amei, gosto de pensar que não é a morte que nos separa, apenas dois mundos diferentes. Nossos corações devem provavelmente mais próximos do que imagino. Não sinta que você tenha ainda algo a fazer, vá e liberte-se, eu o encontro do outro lado, meu amado.

Nostálgico, amargurado e feliz por lembrar de tantos fatos,
O Hobbit

PS: Minha memória é um pouco turva sobre esses momentos, então, perdoem-me se eu me enganei em alguma parte, principalmente o terceiro e quarto parágrafo. Qualquer objeção que minha família possa ter em base do texto, acredite mais nas palavras deles do que as minhas. Desculpem pelo gigantesco texto, foi inevitável.

3 comentários:

Astronauta de Mármore disse...

Caro Hobbitt. Você conseguiu fazer um Astronauta que é de mármore chorar! Nunca lhe perguntei a esse respeito por não saber se deveria. Mas quero que saiba que sinto muito por sua perda. Muito mesmo. E quero que saiba que seu pai está muito orgulhoso da pessoa que você é aonde quer que ele esteja. E nós não precisamos de religião nenhuma nem de acreditar em Deus para fazer o que é certo, para ter ética. Acredito que cada um tenha o "seu céu" da maneira que cada um imagina e que nao é a crença ou a descrença que vai nos impedir ou não de rever nossos entes. Só pelo fato de os amarmos já faz com que eles estejam sempre conosco e que nós possamos vê-los mesmo depois dessa primeira fase, que é a vida.Não se preocupe com isso!Acreditando ou não eu tenho certeza que o Universo ( seguindo minha crença Deísta) se movimentará para que vocês voltem a se encontrar.Seu sempre amigo, Astronauta de Mármore (que derrete).

O Hobbit disse...

Não devia ter se intimidado,cara Astronauta! Meu coração está sempre aberto para compartilhar tudo o que perguntar, sempre. Mas eu entendo seu sentimento. Vi-o uma vez, como retratado no texto, no vidro. Mas não sei se fora a imaginação louca e triste de uma criança, ou ele "tomando conta" de mim, me protegendo, me observando, me amando. Não sei, gosto de acreditar, claro, na segunda opinião. Sabe que sou um homem racional, independente do meu signo, Cigana (hahaha), e não consigo não acreditar em algo depois e ter esperança em vê-lo, ao mesmo tempo que se eu acreditasse em algo após a morte, teria uma certa esperança em vê-lo de novo. Mas acho que, tristemente, sei o que me cabe mais. A não-crença.
Então que o Universo se movimente repetitivamente, ou pare no momento em que nos acharmos.
Bom, já disse demais...
Não se intimide, Astronauta Destemido! Estou sempre aberto a perguntas.
Obrigado pelo seu apoio e compaixão, eles não serão esquecido. Abraços calorosos.

O Hobbit

Mrs. Havisham disse...

Mais um que seu texto fez chorar Hobbit...acho que depois dele e do comentario do astronauta nao preciso dizer mais nada, não é?!Deixo apenas minha sincera comoção.