quarta-feira, 14 de março de 2012

Público

Não começou exatamente naquela tarde de maio. Agora que me recordo de
minhas visitas anteriores, convenço-me que já começara assim, aos poucos, cada
vez que eu ultrapassava a velha porteira do sítio. Começou sucintamente, com algumas conversas, talvez. Mas infelizmente,
começou.

Acontece que naquela mesma tarde de maio eu peguei o trem das sete horas
da manhã. A estação vazia, com alguns ecos escalando pelas paredes. Subi as
primeiras escadas escutando desgostosamente o barulho do meu sapatinho.
Presente do Natal passado. Não me lembro exatamente de quem...fora um Natal
barulhento, um Natal de bêbado, enfim. Mas eis que terminei o último degrau e
olhei os dois lados do corredor: chão encerado refletia um quase reflexo meu. O
zelador ainda encerava, teimosamente, uma marca no chão. Um barulhinho
agoniante saia do esfregão. Esfrega, esfrega.
Decidi pelo lado esquerdo,
igualmente encerado, para minha decepção. Encontrei o guichê das passagens,
tipicamente alto demais. Sujo demais. Público demais. A mulher me olhou por
cima dos óculos de bibliotecária, deixou claro sem dizer palavra que eu não
deveria estar ali; a Connie Francis ecoava um pouco distante enquanto eu não
falava nada.
-Uma passagem. Para as sete. O
trem.
Ela bufou e abriu uma gavetinha,
entregando-me um papelzinho. Bufou de novo quando paguei com uma nota de
cinquenta. Depois do troco, preferi não agradecer.
Fui esperar o trem. A estação
continuava vazia. Sentei-me em um banco de madeira e coloquei minha malinha aos
meus pés. Não levava muitas coisas. Seis e quarenta e sete. Já havia lido
metade dos nomes escrito com canivete -ou com chave- no assento, e relado sem
querer em um chiclete embaixo do banco, quando o trem apitou.
Peguei minha malinha e sentei ao
lado de um moço que dormia. Dormiu a viagem inteira. As quatro horas e meia.
Direto, sem se mexer. Ele tinha a pele branca e os cabelos pretos muito bem
repartidos. E ares de aristocrata.
Nunca mais o vi. Mas acredito que
ele continua dormindo. Ou acordou na última parada do trem.

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